A tevê digital e as previsões imprevisíveis (por Paulo José Cunha)
A chegada da tevê interativa, prevista para o ano que vem, provocará nas redações, agências de publicidade e produtoras de vídeo um terremoto maior do que aconteceu quando a pena de ganso foi para a lata do lixo abrindo espaço para a máquina de escrever. Ou quando esta cedeu espaço ao computador.
Alguns leitores escrevem pedindo esclarecimentos sobre o real impacto da tevê digital, principalmente na publicidade. Boa desculpa para deixar de lado, ao menos por enquanto, a discussão sobre a participação das crianças na novela das 8 e virar o foco da análise em direção ao futuro.
Para simplificar, imagine que seu televisor atual, num toque de mágica, transformou-se num computador. Pronto: isto é a tevê digital. Tal como no computador, em que você pode trabalhar com dois ou mais programas abertos, você poderá assistir a um programa e eventualmente entrar em outro para dar uma bisbilhotada. O controle remoto será seu mouse. Como se estivesse com um cd-rom em execução, poderá saber detalhes pessoais do ator que está aparecendo ali na hora, uma rápida biografia do autor do gol ou a entrevista completa do cantor da qual acabou de ouvir apenas um pedacinho. Ou seja, não se trata de evolução, e sim de revolução. A publicidade, então, passará por modificações tão brutais que o atual formato dos vts comerciais rapidamente será convertido em peça de museu tal como aconteceu com a lauda-padrão que se usava nas redações dos jornais. A razão é simples: a tevê digital vai operar em permanente interatividade, isto é, tanto vai chegar à casa das pessoas como as pessoas vão poder "dialogar" com ela em tempo real. Até aqui, o máximo de interatividade que se conhece na tevê convencional são os programas do tipo "Você Decide", em que as pessoas telefonam para escolher um entre três finais diferentes para uma história. Ou promoções do tipo "ligue agora" para concorrer a um brinde ou desconto em loja.
A televisão brasileira é tão conservadora que um dos primeiros programas de sucesso da extinta TV Tupi de São Paulo, há 50 anos, era a "Escolinha do Ciccilo". Qualquer semelhança com a "Escolinha do Professor Raimundo" de hoje em dia não é mera coincidência. É a máxima do Velho Guerreiro em prática: na televisão brasileira nada se cria, tudo se copia. Mas essa acomodação será detonada pela tevê interativa em que a mudança permanente é que é a única rotina. O engenheiro Fernando Bittencourt, diretor-geral de engenharia da Rede Globo, lembra que um televisor dura cinco, dez anos. Ao contrário, o computador que você compra, no caminho da loja até sua casa já se tornou obsoleto. Assim funcionará a tevê digital, que oferecerá aos publicitários o maior desafio desde a criação do primeiro reclame. Em primeiro lugar, porque o merchandising deverá ser levado às últimas consequências. Em segundo, porque o anunciante poderá pagar à agência de acordo com a eficácia do anúncio, uma vez que a compra do produto será
feita durante sua exibição no vídeo. Outro desafio será para os próprios anunciantes, que terão de manter estoques em quantidade suficiente para atender à demanda em vários pontos do país para ter mais agilidade e velocidade na entrega.
A publicidade terá ainda de se adequar a um telespectador livre para "puxar e colar" os programas que desejar, criando, dessa forma, sua própria grade de programação, o que repercutirá diretamente na noção de público-alvo.
Além disso, como lembra o diretor de mídia da Loduca Virtual, André França, "você deverá saber que aquele anúncio de tevê digital deverá vir totalmente pronto, pois ele será a própria loja em versão virtual". Sem falar na possibilidade de uma brusca mudança de enfoque a partir da rapidez do feedback, o que exigirá enorme flexibilidade das agências e produtoras. O Presidente da Denison, Raul Cruz Lima, lembra que, se hoje tem de passar a idéia de que o monitor do seu cliente é melhor do que o da concorrência, amanhã terá de criar uma nova forma que permita ao telespectador clicar na própria tevê e comprar na hora.
O leitor assustado com tantas mudanças pode se consolar ao saber que os especialistas asseguram que a sua tevê atual, analógica, ainda terá de conviver com a tevê digital pelo menos até 2.015, segundo a legislação. Sabe o que isso significa? Nada. Em 1972, quando surgiu a tevê em cores, os especialistas garantiram que sua massificação só ocorreria no ano 2.000. Dois anos depois, nas favelas, o número de aparelhos de tevê em cores já superava os de preto-e-branco. E se tratava de televisão. Hoje, quando a questão envolve a fusão televisor-computador, qualquer previsão (sem trocadilho), é ainda mais imprevisível.
Paulo José Cunha é pesquisador, professor de telejornalismo e Diretor do Centro Audiovisual de Produção Cultural e Educativa da Universidade de Brasília.
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A tevê digital e as previsões imprevisíveis (por Paulo José Cunha).