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Memórias…

Tomtom Macoute, Bergman, Lupicínio, Antonioni... eu sou sabida. Muito sabida. Se cuidem com minha memória.


Gosto de cantar no chuveiro e nisso nada tenho de original. Mas não canto como uma pessoa qualquer e nem canto músicas quaisquer. Quando canto de brincadeira gosto de imitar discos de vinil em rotação acelerada. Há quem diga que minha imitação é perfeita. Quando canto a sério, também dizem, não sou ruim. Pra falar a verdade gosto de me "estrebuchar".


Só que o que chama minha atenção, contudo e de fato, é o repertório. Nesta segunda-feira, por exemplo, comecei a cantarolar uma música do Lupicínio Rodrigues. "Nunca, nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim...". Até aí tudo bem, não tivesse emendado esta canção com "Nervos de aço", "Esses Moços, pobres moços", "Se acaso você chegasse" e "Vingança". Credo! De onde eu tirei isso? Tudo bem que não tenho mais 20 ou 30 anos, mas Lupicínio morreu em 1974, há tempos demais até pra mim.


Mas o fato é que as cantei. E se o fiz é porque estavam guardadinhas em algum canto de mim. O canto das curiosidades diversas, provavelmente. O mesmo cantinho onde repousam informações sobre coisas que vocês nem imaginam. Você sabia, por exemplo, que Charles Chaplin participou de um concurso de imitadores do Carlitos e ficou em segundo lugar? Eu sei disso desde pequeninha. Não serve pra nada esta informação mas eu sempre a tive.


Como sei que os terríveis Tomtom Macout formavam a guarda pessoal dos ditadores Papa e Baby Doc, do Haiti, muito antes de este nome ser usada por uma banda de rock portuguesa na década de 80. Hahaha... duas informações na maior relevância e de seu total desconhecimento, né?


São informações que não servem para nada mas que eu tenho. E não me faz mal tê-las porque permitem, entre outras coisas, que eu fique aqui enchendo linguiça até começar um assunto que eu acho um pouco mais importante: o desinteresse pela informação e o desinteresse por bem informar.


Em dois dias seguidos morreram dois dos mais renovados cineastas de qualquer tempo (deste ou futuro), Ingmar Bergman e Antonioni. O período mais profícuo de ambos não acompanhei ao vivo, mas muita aula na faculdade matei para assistir os ciclos do extinto cinema Bristol, de Porto Alegre. E lá estavam estes e mais os antigos ou então contemporâneos Truffaut, Fellini, Godart, Fassbinder, Herzog, Saura, Wajda etc. A maior parte um bando de chatos mas até hoje indispensáveis para quem quer conhecer minimamente o que é cinema e suas reais possibilidades, não aquelas simplesmente geradas no computador.


Bem, ocorre mesmo que morreram e esta notícia não deve ter causado qualquer impressão, positiva ou negativa, em 98% dos que a ouviram na televisão ou a leram no jornal. Muitos pela completa ignorância de quem seriam os falecidos e outros, também muitos, por diferente tipo de ignorância, aquela que os impedia de buscar saber quem DE FATO seriam. Não compreendo mas aceito. Fazer o que?


Patético mesmo foi ver as caras de William Bonner e Fátima Bernardes anunciando as mortes dos "grandes cinestas que o mundo perdeu". Eu até acredito que ambos, como eu, foram a um ou outro ciclo de cinema dito de arte. Mas que trabalho cruel ter que dar ênfase a uma notícia que caiu num total vazio, vazio este em grande parte criado pela própria emissora para a qual trabalham. É estranho ver a Globo lastimar a morte de dois cineastas que jamais tiveram qualquer de seus filmes transmitidos pela emissora. Nem nos horários mais madrugadeiros e sem audiência. Tudo bem que os cacos de vidros introduzidos na vagina de uma personagem, cena mostrada em Gritos e Sussuros, do Bergman, não cairia muito bem após Paraíso Tropical e mesmo depois do Jô, mas daí a terem esperado os caras morrerem para, finalmente, mencioná-los, já é demais.


Como vemos, este aglomerado de informações aparentemente inúteis sempre me ajudam. Eu sei quem foi Bergman, sei quem foi Antonioni, imagino que Bonner e Fátima não sejam ignorantes, sei porque as TVs sempre ignoraram aquilo que foge ao padrão (e que não seja o tal "padrão Globo de qualidade"), sei que as emissoras sabem que há chatos como eu que sabem tudo isso e, só por isso, noticiaram as mortes. Para que eu não pensasse que elas não soubessem delas, as mortes (ufa!).


Eu sou sabida. Muito sabida. Eu cantarolo as músicas do Lupicínio Rodrigues. Se cuidem com minha memória.