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As verdades de Márcia *

Se há duas verdades nas quais acredito, elas são: tudo precisa fazer sentido; e nada acontece em vão.

Se há duas verdades nas quais acredito, elas são: tudo precisa fazer sentido; e nada acontece em vão.


Conto agora um só fato, ocorrido há 36 anos, e que bem ilustra minha convicção.


Quando ingressei no 1º ano primário, equivalente hoje ao Ensino Fundamental, era comum aplicarem nas crianças os famigerados testes de Q.I. (quociente de inteligência). Sem qualquer modéstia, o resultado do meu beirou os 150, índice bastante acima da média. Minha mãe, coruja como quase todas, celebrava: “se Victor (meu irmão) conseguiu aprender a ler muito rápido com seus 130 de Q.I., Márcia vai ler em uma semana”.


Estas palavras minha mãe teve que engolir. Ao contrário do seu prognóstico, fui a última criança de minha turma a aprender. Para desespero de todos, era chegado agosto e nada desta aqui ler ou escrever algo além do nome decorado. A professora, provavelmente colocando em dúvida sua capacidade, compensava-me com mimos o que julgava ser (imagino) uma incompetência sua.


Um dia andávamos de bonde em Porto Alegre quando olho os anúncios acima das pequenas janelas do veículo e começo a lê-los todinhos... um por um. E já tendo lido todos, olho para fora e começo a ler os outdoors. Assim mesmo, rapidinho, com o bonde em movimento.


Meu pai, já desesperançado, não acreditava que estivesse realmente lendo e supôs que o gênio aqui houvesse decorado os anúncios. Como se alguém algum dia os tivessem lido para mim.


Ao chegar em casa, a primeira atitude do meu pai foi abrir uma página do Correio do Povo em minha frente e mandar que eu lesse aqueles “tijolões”, textos enormes em páginas com pouquíssimas ilustrações ou fotos.


Reza a lenda que eu li. E que eu li bem. Sem gaguejar ou tropeçar nas letras, algo inusitado para quem, até 2 horas atrás, era completamente analfabeta.


Desta história concluo que a chatice é minha velha companheira. Que decorar o alfabeto me era fácil, impossível para mim seria ler mal. E nos meus mecanismos internos que hoje identifico, eu só conseguiria ler depois que compreendesse o sentido daquilo. Não me bastava juntar letras e sílabas em palavras e palavras em frases. Elas teriam que fazer o sentido que só a fluência permite. Não poderia ficar tão concentrada em ler que me fosse impedido compreender.


Tem sido assim toda minha vida, só consigo atuar com entendimento. Claro que hoje aceito não haver explicação alguma para certos fatos, raros com certeza, caso contrário viveria imobilizada.


A mesma história também serve para ilustrar minha tese de que nada nesta vida ocorre por acaso. Se naquela tarde de 1968 o incrédulo Victor Hugo, ao invés do exemplar dominical do Correio do Povo, me tivesse dado uma bula para ler, teria eu me tornado médica? Farmacêutica? E se fosse a conta de luz? Engenheira? Contadora?


Não! Fui ser jornalista. “Comprovada” assim minha hipótese da supremacia dos fatos para a formação do ser humano


Comprovada entre aspas, ressalto, pois há ainda uma terceira verdade na qual acredito: todas as convicções podem ser derrubadas. Inclusive estas acima, que compõem apenas uma historinha bonitinha e verídica, mas manipulada para justificar minha existência como sou, conforme me convém, como fazemos todos.