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Adoro ver as caras que as pessoas fazem com revelações simples. É só a criatura sair um pouquinho da caixa que o mundo cai. Imagina não corresponder aos anseios místicos, trágicos ou redencionistas delas?

Há alguns momentos na vida em que observo olhares estranhissimos em minha direção. Um deles é quando absurdamente perguntam qual meu signo. Já sei que uma cara de nojo vai tomar conta do abelhudo místico à simples resposta: câncer.

É infalível. Depois de tanto suportar na ignorância tais raios (ora travestidos de olhares fulminantes, ora piedosos... mas sempre de desdém) fui pesquisar para ver o que pegava neste povo. Suponho que seja aquela coisa rançosa de cancerianos viverem no passado. serem as mães do mundo blá, blá, blá.

Então, armada de conhecimentos rasteiros, passei a dizer que sou uma anti-canceriana. Que provavelmente superei minha nefasta cancerianice no divã do psicanalista. Não sinto saudade, tenho instinto maternal zero e penso no passado apenas o suficiente para não perpetuar erros. Tenho facilidade enorme de apagar lembranças, sobretudo as ruins. Telefone ou performance de ex? Humpft.

É neste momento que uma mezzo-pergunta, mezzo-certeza se insurge contra mim: "ah ... mas você deve ter um ascendente em terra". Com ar vitorioso embasado em pesquisas para combater esta praga, fulmino: "não. Sou canceriana com ascendente em câncer". Algumas inúteis tentativas de me provar que eu não sou eu e que apenas não me reconheço naqueles livros cheios de tábuas lunares e o incauto desiste. Saio triunfante pois sei que meu comportamento cínico não coaduna com a fofura esperada de uma canceriana.

Outra pergunta-comentário que provoca olhares plenos de comiseração, e que no verão é ainda mais corriqueira: "nossa, Márcia, como você é/está branquinha. Não gosta de sol?". Como já estou velha demais para ser emo, lúcida o bastante para não me manter "dark" 25 anos depois da moda e sei que não aceitam um simples sim como resposta, tenho que dizer que não vou ao sol porque não posso.

É nesta hora que eu percebo mais uma vez o humano gosto pelo trágico. Quando digo que não posso ir ao sol porque tenho lúpus (ou rhupus, ou sjogren... depende o que dizem os últimos informes da sociedade internacional de doenças auto-imunes, que mudam a cada semana) me vejo definhando aos olhos do interlocutor.

Doença é coisa engraçada. Todo mundo conhece alguém com alguma coisa que você tem e nunca chegam com um "case" de sucesso. É só tragédia, desgraça. A pessoa faz uma cara que pelamordedeus... Tudo bem que saber que tenho uma espécie de "alergia a mim mesma" é meio complicado, mas sublimo legal. Fora isso não tenho problema algum que Reuquinol e Artrolive não dêm conta. Sem piedade, por favor. Fico feliz que existem remédios e que posso comprá-los. No mais é só não dar muita moral e a vida segue na maior normalidade. Eu sou o "case" de sucesso.

Finalmente, a terceira cara de pavor vêm de alguns cristãos quando descobrem que não tenho fé. Que não creio. Eu lá tenho culpa por não ter recebido a grande revelação? A primeira vez que senti este olhar de quem depara alma atormentrada foi há muitos anos. Estava ainda na faculdade.

Num domingo pela manhã, umas 10 horas, sei lá como o porteiro deixou entrar duas senhoras, aparentemente evangélicas, que chegaram sem aviso a minha porta. Acordei com a campainha e fui me arrastando atender. Começou a pregação. Sem paciência e nova demais para ter desenvolvido jogo de cintura, tasquei: "não adianta as senhoras insistirem pois eu não acredito em Deus". Por instantes as duas travaram, até que uma se saiu com esta: "e tu és feliz"? - "Claro que não, mas não tem nada a ver com isso".

Devem rezar por minha alma até hoje.

Você sabe que uma pessoa está totalmente alienada da modernidade quando ela ainda acredita existir uma "vida real" e outra "virtual", como se houvesse dissociação entre elas. Aliás, como se fossem "elas" e não uma só.

Você sabe que uma pessoa está totalmente alienada da modernidade quando ela ainda acredita existir uma "vida real" e outra "virtual", como se houvesse dissociação entre elas. Aliás, como se fossem "elas" e não uma só. Ainda tem gente que fala bobagens como "na internet é fácil mentir, enganar". Oras, o mentiroso mente de qualquer jeito e em qualquer mídia. E o ingênuo igualmente se deixa enganar onde quer que seja.

Observo com atenção as redes sociais e não vejo nelas qualquer discrepância com o cotidiano da maioria das pessoas. As pessoas que "bombam" no Twitter, Facebook, MySpace e afins são as mesmas que "bombam" na antigamente chamada "vida real". Eu já ouvia falar em Rosana Hermann muito antes da internet tomar prumo. É só ver o sucesso dos diversos empreendimentos de Ashton Kutcher para saber que ele jamais esteve fadado à obscuridade e a família Ronson já dividia a ceia com os Lennon bem antes dos blogs os alçarem ao status de celebs.

E André Czarnobai já era um moleque metidinho desde sempre, de qualquer forma ele seria conhecido no Bonfim, em Porto Alegre, no Brasil ou no mundo, dependendo apenas do tamanho das ondas que carregam suas deliciosas maluquices. A garota "amigona" da escola e ao carinha bom de bola e cerveja hoje têm ao menos 700 amigos no Orkut.

E eu ocupo o espaço que me cabe. Estou presente em todas as esferas da web I, II ou ∞, assim como conheço os principais restaurantes e bares de minha cidade e dos lugares pelos quais passo, mas entro e saio discretamente deles, acompanhada apenas do meu seleto grupo de amigos, sem jamais misturar universos público e privado.

Não sou afeita aos flashs, sou mulher de bastidores. Não seria diferente na telinha. Um reality show comigo beiraria o insuportável. Eu não alcançaria qualquer populariade dentro ou fora do cativeiro. Paredão ou roça na certa. Ou bloqueio, no caso da internet.

Sou para poucos. Como há os que são para muitos (se é que isso é possível de fato). E isso em qualquer lugar, não percebo onde começa ou termina a web.

Memória é coisa esquisita. Guardamos nela o que queremos e apagamos o que pouco nos interessa. Neste baú cabem lembranças agradáveis ou traumáticas, mas isso não é regra. Minha memória me surpreende com imagens que aparentemente não teriam a menor relevância. Nem para o bem e nem para o mal.

Memória é coisa esquisita. Guardamos nela o que queremos e apagamos o que pouco nos interessa. Neste baú cabem lembranças agradáveis ou traumáticas, mas isso não é regra. Minha memória me surpreende com imagens que aparentemente não teriam a menor relevância. Nem para o bem e nem para o mal.

Uma delas me veio à mente outro dia e desde então não me sai da cabeça. Ela me leva aos 11 anos de idade. Morava em Porto Alegre, no bairro Menino Deus, e frequentava a piscina do clube Grêmio Náutico Gaúcho, para o qual ia sozinha. Era -e ainda é-, uma piscina enorme. "Olímpica" em seus 50 metros de comprimento e 25 de largura. Lembro de minhas sofridas braçadas para atravessa-la uma, duas, três vezes.

Lembro do Omar, um "namorado" abandonado tão logo me pediu um beijo embaixo d'água. Não recordo seu sobrenome mas nasceu em Cruz Alta, onde seu pai tinha uma sorveteria. Guardei esta informação não por ser Omar o "filho do dono"... mas porque até hoje não desvendei um segredo que me foi revelado por ele: "Márcia, não se faz sorvete de melancia. É impossível. Não presta". Se alguém souber o motivo, me avise. Encontrei Omar anos depois, já ambos com uns 20 anos. Estava bonito pra danar  e então dei o beijo negado no passado mas esqueci do mistério da melancia.

Tudo isso eu lembro como uma cena só. Em close, plano geral e traveling sem cortes, embalados pela mais doce de todas as memórias auditivas da minha vida. As braçadas, as tentativas de ornamentar meus saltos, as brincadeiras com Osmar, o beijo negado e a informação da melancia... tudo isso ao som de duas músicas: "Killing me softly with his Song" (..."strumming my pain with his fingers, singing my life with his words"...), na gravação de Roberta Flack, e "Eu só quero um xodó", gravado por Gilberto Gil no álbum "Cidade do Salvador". Ambos sucessos do verão 1973/74.

Engraçado que a tristeza das letras contrastam com a alegria que me transmitiam. Seguramente estavam associadas a departamentos interiores que, aos 11 anos, não contemplam baixo astral.

E felizmente assim as mantive.

Eu só Quero um Xodó

Que falta eu sinto de um bem
Que falta me faz um xodó
Mas como eu não tenho ninguém
Eu levo a vida assim tão só
Eu só quero um amor
Que acabe o meu sofrer
Um xodó pra mim
Do meu jeito assim
Que alegre o meu viver


Killing me softly with his song

Strumming my pain with his fingers
Singing my life with his words
Killing me softly with his song
Killing me softly with his song
Telling my whole life with his words
Killing me softly, with his song
I heard he sang a good song, I heard he had a style
And so I came to see him, and listen for a while
And there he was, this young bwoy, a stranger to my eyes
I felt all flushed with fever, embarrassed by the crowd
I felt he found my letters, and read each one out loud
I prayed that he would finish, but he just kept right on
Oh, oh, oh... La, la, la, la...